Se na Amazônia a conciliação entre o desmatamento para a expansão do agronegócio e a preservação da natureza tem sido um grande desafio, no Cerrado, o segundo maior bioma do Brasil, a questão ganha contornos ainda mais tensos.
A celebração do Dia do Cerrado, nesta segunda-feira, 11 de setembro, pode ser um chamamento para melhor discutir o que deve ser feito, a curto prazo, para proteger uma área de 2 milhões de quilômetros quadrados, berço de uma das maiores biodiversidades do planeta, 330 mil espécies de plantas e animais, muitas endêmicas.
O Onçafari tem uma base no Cerrado. Fica na Fazenda Trijunção, localizada naquele ponto em que os estados da Bahia, de Goiás e Minas Gerais se encontram. O seu grupo de biólogos desenvolve trabalhos em várias áreas, mas principalmente no estudo do lobo-guará, animal símbolo do Cerrado.
Antes de a bióloga-chefe do Onçafari no Cerrado, Bárbara Dias, narrar o que ela e os profissionais que lidera sentem ao viver nessa zona de interesses conflitantes, vale a pena expormos um pouco mais sobre o que é o Cerrado hoje. Permitirá compreender melhor a descrição da bióloga.
No Brasil, a sua área compreende os estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Rondônia, Paraná, São Paulo e Distrito Federal. Só perde em extensão para a Amazônia, com seus 6,7 milhões de quilômetros quadrados.
O Cerrado é um dos maiores polos de produção de carne e grão, principalmente a soja, do mundo. Atente a essa característica única: limita-se ao norte com o bioma Amazônia; a leste e nordeste, a Caatinga; ao sudoeste, o Pantanal; e a sudeste, a Mata Atlântica. É o único bioma na América do Sul a ter tantos contatos biogeográficos.
Papel essencial nas águas
Sua área abriga as cabeceiras de diferentes bacias hidrográficas, como a Bacia do Amazonas, Bacia do Tocantins, Bacia do Paraná, Bacia do São Francisco e Bacia do Parnaíba.
As características físico-climáticas do Cerrado como, por exemplo, a pluviosidade, a vegetação, tipo de solo e altitude, repercutem na riqueza de rios e águas subterrâneas, fazendo com que o subsolo seja capaz de estocar grandes volumes de água. Lembra da dimensão do Cerrado, 2 milhões de quilômetros quadrados? Área em que caberiam juntos países como França, Espanha, Alemanha, Itália, Reino Unido e Grécia, por exemplo.
Esse aspecto de captar água em uma área tão extensa tem papel de grande relevância para o Brasil, como você verá. É por isso que o Cerrado, com seus campos, é chamado de a “savana brasileira e a caixa d’água do país”.
Há muito o que pode ser dito sobre o Cerrado, mas esses dados já nos permitem entender melhor as explicações, a seguir, da bióloga do Onçafari.
Mostrar sua relevância
Sobre a celebração do Dia do Cerrado, Bárbara não acredita que a data tenha algum impacto em ações ambientalistas. “Mas representa uma ótima oportunidade para reverter isso. Trazer as pessoas para olhar para o Cerrado, entender sua importância e falarmos sobre ele.”
Ela lembra: “No Cerrado temos inúmeras espécies de animais e vegetais e muitos se encontram ameaçados de extinção, como o lobo-guará, a onça-pintada, o tatu-bola, dentre outros. O Cerrado é considerado um hotspot de biodiversidade, ou seja, há alta concentração de espécies e está experimentando uma excepcional perda de habitat, é um dos locais do mundo que mais merece atenção”.
Prossegue: “Com o investimento certo em ciência e tecnologia, nós temos muito o que descobrir dentro da complexidade do Cerrado, o bioma abriga um potencial imenso que poderia estar retornando como benefícios para sociedade”.
A questão das águas é abordada: “O Cerrado é uma das principais fontes de água para o país, funciona como reservatório, uma grande bacia de água localizada no meio do Brasil que a fornece para oito bacias hidrográficas brasileiras, incluindo a Bacia Amazônica e três importantes aquíferos brasileiros: Bambuí, Urucuia e Guarani”.
Mais da sua importância para a nação: “O Pantanal e a Bacia Amazônica dependem das águas do Cerrado, o aquífero Guarani, responsável pelo fornecimento de água para o Estado de São Paulo, depende também. Se o Cerrado seguir sendo destruído irá impactar o Brasil inteiro, já que fornece água para quase todo o país”, diz Bárbara.
Nos estudos da natureza, é preciso estabelecer todas as relações possíveis entre as várias vertentes de um ecossistema. . Bárbara dá mais detalhes: “Grande parte da eletricidade consumida no Brasil é gerada pelas águas do Cerrado. Uma das principais fontes de energia vem de usinas hidrelétricas que dependem das águas que, a rigor, vêm do Cerrado”.
Prossegue: “Se continuarmos com o desmatamento descontrolado e secando os aquíferos, como Urucuia, onde a Trijunção está inserida, teremos uma cadeia de consequências, e até usinas como Itaipu, lá no Paraná, vão ser afetadas. Preservar o Cerrado é garantir qualidade de vida para o Brasil inteiro”.
Devastação desenfreada
Apesar da sua importância, o desmatamento do Cerrado atingiu recorde em 2022. Números oficiais mostram que o bioma perdeu 10.689 quilômetros quadrados. O município de São Paulo, considerado grande, tem cerca de 1.500 quilômetros quadrados.
O dado é ainda mais alarmante quando comparado ao desmatamento da Amazônia, no mesmo período: 11.568 quilômetros quadrados. Apenas um pouco mais do Cerrado, mas como lembra a bióloga do Onçafari, a Amazônia é duas vezes maior que o Cerrado.
Bárbara: “Claro que não podemos pensar no Cerrado como uma coisa isolada. A Amazônia, assim como outros, está relacionada com os serviços ecossistêmicos gerados pelo Cerrado. Mas o Cerrado por não ser tão popular e não ter a visibilidade da Amazônia está sendo desmatado, destruído às cegas. O pessoal nem fala tanto sobre isso e tampouco é uma pauta nacional”.
Mais: “Ao contrário da Amazônia, poucas áreas do Cerrado são de fato protegidas, estão em uma unidade de conservação. Hoje apenas 3% do bioma são assegurados integralmente, protegidos. Muito pouco para a sua importância”.
Esse cenário nefasto para o futuro do Cerrado impõe a necessidade da adoção de medidas protecionistas urgentes. “Precisamos do agronegócio mais bem pensado, sustentável, há tecnologia, conhecimento para ser feito de forma melhor, que não seja desenfreado como hoje”, diz Bárbara.
Faltam estudos
“Aqui na região onde estamos, as fazendas trabalham com pivô de irrigação, puxam água do subsolo, armazenam em tanques gigantescos e conseguem irrigar as plantações o ano inteiro, mesmo na época de seca. Esse processo não é cobrado, não há um controle rígido, não há estudos aprofundados sobre o impacto para o aquífero e sobre a biodiversidade, o valor que isso tem”, complementa a bióloga.
O que mais chama a atenção de profissionais conscientes que trabalham no Cerrado é inanição das autoridades para melhorar as coisas. “É possível fazer mais, criar mais áreas protegidas e conciliar agronegócio com o meio ambiente, mas é preciso obrigar os fazendeiros a fazer de forma sustentável, incentivar a criação de Reservas Particulares de Patrimônio Natural (RPPN) nas propriedades para que a gente consiga pelo menos criar corredores ecológicos para a fauna.”
Outra medida necessária é proteger os canais de irrigação para evitar de os animais caírem lá dentro e morrer, o que vem acontecendo com frequência chocante. Como a ampliação do agronegócio parece inevitável, então que se adotem medidas mais rígidas de fiscalização e um trabalho de mitigação de impacto, estudo de fauna e flora e o afugentamento da fauna antes do desmatamento da área.
“Essas são apenas algumas das questões que precisam ser discutidas a fim de definir ações práticas de imediato”, afirma Bárbara, estudiosa do Cerrado.
