Lilian Rampim
Em depoimento ao jornalista Livio Oricchio
Oliver demonstrou reunir todos os ingredientes necessários para fazer sucesso quando reintroduzido na natureza. Mas, claro, nunca podemos ter certeza.
Olha eu de novo aqui, amigos.
Muito bem, no capítulo anterior o Oliver estava para entrar no seu primeiro recinto, aqui na Caiman. Nós temos dois, um menor, com cerca de 100 metros quadrados, mas com árvores dentro, pequenas e grandes. E outro recinto enorme, no tamanho de um campo de futebol, dotado de área plana, árvores, lago, uma extensão da natureza local, um minipantanal..
Tem oito portas, para variarmos a colocação da comida. Mais para a frente vou falar sobre o que fazemos para desfazer ao máximo a sensação de que o animal não está em um ambiente que não seja o seu.
Nos dias seguintes à chegada, nós observamos o Oliver com muita discrição, como de hábito. Era preciso entender como estava reagindo a uma mudança importante, a do cativeiro no Cras para o novo, algo mais perto do seu. O exame da dentição e o número de pintas na pelagem sugeriam que ele tinha no máximo três meses de vida.
Aquele comportamento de fera selvagem que vimos no primeiro contato parecia mesmo fazer parte do seu patrimônio genético. De novo: maravilhoso para as nossas pretensões de devolvê-lo à natureza.
O Oliver era superarredio, ficava na parte mais alta do tronco, seguindo a gente com os olhos. Só ia procurar a comida depois de assegurar-se de não mais estarmos na área, não importando a extensão da sua fome.
Sua mensagem era clara e nós a seguíamos à risca, até porque é assim que trabalhamos: ‘Caiam fora daqui!’
Vou me permitir uma licença poética. Sabe com quem o Oliver parecia nessa época? O Gato de Botas de Shrek! Amigos, incrível a simpática semelhança entre as duas caras felinas.
Seguir uma rotina, proibido.
Aqui eu preciso de novo explicar algumas coisas de nossa metodologia, certas premissas básicas para obtermos sucesso na reintrodução do animal no seu habitat natural. Primeira regra é quebrar a rotina do cativeiro, aquela é uma morada temporária.
Nada de almoço e jantar em hora determinada. A nossa equipe tem de ser o mais surpreendente possível na vida dos animais. Por ser essa a realidade que enfrentarão lá fora. O Oliver, como os demais que devolvemos à natureza, não tiveram a mãe para lhes ensinar nada.
A sua escola, o despertar de seus instintos é responsabilidade nossa. Desafiador, sabemos, mas ao mesmo tempo profundamente prazeroso quando vemos dar certo, como em geral tem acontecido, felizmente.
Vou contar uma historinha. Uma noite fomos na ponta dos pés ao seu recinto, com uma lanterna, para estudar o comportamento noturno. Exige boa caminhada até lá. Início de noite, 19 horas. Amigos, o Oliver virou um demônio. Arregalou os olhos, colocou as orelhas para trás, expôs os dentes. Uau!
Os encontros com os seres humanos devem ser sempre fugazes e, como disse, não permitir que eles nos associem com o bem-estar, receber uma recompensa. Isso para que quando regressarem ao seu habitat e virem um ser humano não tentem se aproximar por achar que vão ganhar comida e carinho.
Também nos aproximamos, em certos momentos, apenas para sinalizar que lá passamos, rapidamente, e nada mudou na sua rotina. Era para ele, de novo, não fazer associação entre nós e seja lá o que fosse. Era somente uma outra espécie, nós, se deslocando, sem desdobramento algum.
Problema não era o feixe de luz
Fizemos uma experiência com uma lanterna de luz infravermelha, de visão noturna, aquela que não emite o feixe de luz. A reação do Oliver foi a mesma, o que nos mostrou não ter sido a luz da lanterna que o incomodava.
Como é possível que o Oliver em algum momento da vida irá cruzar com a figura de um automóvel, fomos até lá com um carro. Não importava a condição, de farol aceso ou apagado, nos evitava.
Uma ocasião coloquei aquela lanterna de cabeça, com a luz saindo da testa, e o animal demonstrou aversão ainda maior. Em resumo, as reações tinham sempre o padrão agonístico, de ir para a luta. Ok, aprendemos de vez, nada de elevar seus níveis de adrenalina.
E tudo isso, amigos – imagine –, tendo ainda dentes de leite! Para suprir suas necessidades proteicas nós lhes oferecíamos uma mistura de carnes, bovina, suína, aves, nessa fase com pedaços nem grandes nem pequenos, pois como todo carnívoro não mastiga, engole direto.
A onça-parda gosta de vísceras, fígado, pulmão, enquanto a onça-pintada tem uma predileção maior por músculo mesmo.
Alimentação suplementar
Olha que interessante: se o Oliver estivesse sendo criado por sua mãe, mamaria até os sete meses. O leite materno lhe daria um aminoácido não frequente, ou existente em baixa concentração, nas carnes, a taurina, importante para o seu metabolismo. É por isso que recebia junto do alimento o suplemento Aminomix.
Vou avançar um pouco a fita até o ponto em que o Oliver atingiu 11 meses de vida, sempre reagindo na mesma forma quando, cada vez mais raramente, via de longe um ser humano.
Você talvez se lembre de que nós chegamos aqui na Caiman com o Oliver, lá do Cras de Campo Grande, no dia 27 de outubro de 2021. Estamos agora no dia 5 de setembro de 2022, data em que ele irá passar para um recinto bem maior, experimentará outra fase da sua evolução para regressar ao ambiente natural.
No recinto grande, havia um onça-parda fêmea, a Nala. Nós a levamos para a fazenda vizinha, a Santa Sofia, onde também mantemos uma área destinada a receber animais em fase avançada de preparação.
Não seria possível deixar os dois juntos no mesmo espaço, apesar de ambos serem onças-pardas. A Nala é mais velha que o Oliver. A convivência entre ambos exigiria um período de adaptação e não é o objetivo do projeto.
Esse não foi o caso da Isa e da Fera, as duas irmãs que como contei no capítulo anterior já têm até netos na natureza. Elas são onças-pintadas irmãs, foram resgatadas juntas e cresceram juntas, o que não ocorreu com a Nala e o Oliver.
Doce deslocamento pela natureza infinita
Agora um pouquinho do que é habitar aqui nesse esplendor de vida que é o Pantanal. Para ir da base do Onçafari na Caiman para a da Santa Sofia, nós seguimos com a picape por uma estrada de terra que acompanha o rio Aquidauana por algo como 35 minutos.
Estacionamos perto de um ancoradouro para, com um barco, viajar por 20 minutos até chegar a um ponto da margem onde é possível ver uma estradinha. Nela nos deslocamos, de novo com picape, por mais 20 minutos. Pronto, chegamos. Fez as contas? Nada menos de quase uma hora e meia. Sacrifício? Qual nada. É um privilégio.
Veja: durante todo o trajeto deparamos com vários animais, mamíferos, aves, répteis, anfíbios, com seus biotipos, cores múltiplas e sons de todas as frequências, intensidades e timbres. Como a maioria não nos vê como predadores, não precisa ficar distante, formamos, juntos, o ecossistema, permitindo nos manter em constante estado de elevação. Uma benção!
São áreas grandes, como quase tudo aqui no Pantanal Matogrossense: a Caiman tem 530 quilômetros quadrados e Santa Sofia, 340.
Se você não conhece o Pantanal, tens aí uma brevíssima fotografia de nosso local de trabalho.
Só anestesiando
Estávamos para transferir o Oliver do recinto pequeno para o grande na Caiman. Fosse uma onça menos arisca – jamais veja como um desejo, por favor -, nós conseguiríamos fazer com que entrasse em uma gaiola e o levássemos para lá. Isso vale para a grande maioria. Não para o Oliver. Ele não entraria nunca espontaneamente na gaiola.
Não houve outra saída senão usar um dardo anestésico administrado pelo nosso veterinário. Nós seguíamos tudo de perto.
Aproveitamos para realizar todos os exames possíveis no Oliver. Descobrimos que tinha um pequeno problema nos pelos da cauda, gerado por pulgas. O Oliver gostava de permanecer muito tempo na sombra, o que contribui para surgir esse desconforto, rapidamente resolvido pela equipe.
No espaço grande que era da Nala o Oliver também passaria a ter de caçar animais maiores do que as galinhas vivas, por exemplo, já lhe oferecidas antes. Precisávamos entender como se sairia ao caçar presas maiores e capazes de feri-lo, como cotias. Com as menores, o Oliver era um exímio caçador.
Aprovado nas várias fases de uma caça
Esse é um aspecto fundamental, como sabemos, para o animal poder sobreviver na natureza. Vamos esmiuçar o que observamos para tirar nossas conclusões nesse exercício capaz de nos responder se podemos pensar ou não na sua reintrodução?
A primeira fase do processo de caça é a detecção. Opa, tem comida viva em potencial, uma presa, no recinto. Em um ambiente com dimensões de um campo de futebol, como é o nosso recinto maior, pleno de árvores, pedras, lagoa, a simples localização da presa já é um desafio.
A seguir, o animal deve estabelecer a estratégia de captura, bem como precisa ser eficiente no abate. O tempo entre a captura e o abate tem de ser pequeno, é a eficiência mencionada. Por fim, o momento do consumo. Também exige um aprendizado do animal. Cada presa demanda uma postura.
Avaliamos tudo isso antes da soltura do animal. Quer saber como o Oliver se saiu nesses quesitos? Muito bem, ratificou os dotes de caçador emérito, atacando direto no pescoço da presa e realizando o abate rápido. Ele não tinha a mãe como exemplo para ver e aprender. Isso tudo faz parte dos seus instintos, impressionante!
Nossa responsabilidade era oferecer presas do seu cardápio natural na fase adulta, cada vez mais difíceis, e estudar como o Oliver se comportava.
Autorização para oferecer presas vivas
Deixa eu dizer uma coisa importante. Nós temos licença dos órgãos competentes para capturar esses animais que servirão de alimento para, no caso, o Oliver. Há ética a ser seguida nesse trabalho, a cotia é também importante, tem o seu papel ecológico, mas predadores, como a onça-parda, necessitam de exercícios para aprender a caçar.
Animais como a cotia, tatú, aracuã, um galináceo, tapiti, um coelho, porco monteiro, são bem abundantes no Pantanal. Nós usamos manejo na captura, tudo segue protocolos.
E tem mais, nós somente montávamos a armadilha para capturar as presas depois de três ou quatro dias de jejum do Oliver, condição mais comum de ele enfrentar na sua vida selvagem.
Hei, hei, olha o tamanho do texto! Vamos ficar por aqui nesse segundo capítulo? Procurei dar uma ideia também da ciência que está por trás de tudo que fazemos, fruto de nossa formação, claro, mas principalmente do aprendizado nesses 12 anos de estudos sobre como melhor reintroduzir animais tão particulares – e pouco conhecidos – como onças e lobos-guarás.
Até o próximo capítulo.