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Lilian Rampim
Em depoimento ao jornalista Livio Oricchio

Depois de quase dois anos de extenso trabalho de preparação, Oliver mostrou-se apto a sobreviver, sozinho, na natureza.

 

Oiiiii… Cá estou. Lembra que no capítulo anterior o Oliver havia chegado ao seu novo recinto, um minipantanal? Pois ele o adorou, bem mais amplo, compatível com essa nova fase do treinamento. Marcou cada pedaço do território. Cobriu todos os cheiros da Nala com o seu. Nala, lembra? A onça-parda que estava lá. Não fazemos manutenção nessa área, as árvores estão altas, parece um pedaço esquecido, como no habitat natural.

O Oliver pulava de árvore em árvore, ganhou importante massa muscular, entrava na água, estava em casa.

Nós fornecíamos presas vivas e agora carne com osso também, supernecessário para limpar os dentes, como todo felino faz. Como já contei, o Oliver não nos via colocando alimento nas diferentes portas do recinto, não poderia se sentir recompensado com nossa presença.

É bem diferente de um zoológico em que tudo é bastante regrado. O animal vê o tratador entrar na área reservada, sabe que irá limpar e colocar comida. Nós temos é de bagunçar sua vida, não podem ser condicionados.

Vou dar aqui alguns números do Oliver. Há bons indícios de que tenha nascido em julho de 2021. No dia 6 de fevereiro de 2022, então com sete meses, ainda no recinto pequeno, pesava 12,4 kg.

No dia que o transferimos para o grande, recordando, 5 de setembro de 2022, com um pouco mais de um ano, tinha 25,4 kg. E no dia 17 de março de 2023, quando lhe colocamos um colar com GPS, com um ano e oito meses, já na fase final para a reintrodução, 32 quilos.

Tamanhos distintos

Nossa, pensei que pesava mais! Você pode estar pensando. A resposta é depende de onde vive a onça-parda, puma, leão da montanha, os vários nomes adotados para a mesma espécie. No Pantanal, uma onça-parda adulta, macho, pesa entre 35 e 38 quilos. Têm de ser esguias, ágeis por conta de suas presas também serem rápidas.

Já as onças-pintadas são maiores porque, dentre outras razões, abatem presas maiores, fortes e perigosas.

Na América do Norte, as onças-pardas são bem mais robustas, pesam 80, 90 quilos, suas presas são muito maiores.

Já que estamos falando de dimensões dos animais, nós capturamos para instalação de colar com GPS uma onça-pintada macho que pesava impressionantes 140 quilos. Uma raridade também por não detectarmos nenhum parasita.

Nós tivemos de esperar o Oliver atingir quase dois anos antes de poder instalar o colar com GPS a fim de monitorar seus passos no meio ambiente. Precisávamos ter a certeza de que não iria crescer mais. Nesse espaço de tempo nós o submetíamos a todo tipo de prova preparatória para a soltura.

Estamos em junho deste ano, 2023, o grande dia estava chegando, o Oliver sugeria estar bem preparado para enfrentar o maior desafio de sua vida, encarar nova e importante mudança. Nossa função era torná-la a menos radical possível, por já ter experimentado várias situações previamente, durante seu treinamento.

Muita coisa pode não funcionar

Por mais que o nosso trabalho o deixe potencialmente em condições de sobreviver sozinho na natureza, fica sempre no ar uma pontinha de apreensão. Há muitas variáveis que entram em cena, não tem como prepará-lo para tudo, como a ameaça de outro animal da mesma espécie, as disputas territoriais e por acasalamento, por exemplo. Como ele irá reagir?

Nós concluímos que o Oliver atingiu a maturidade e o anestesiamos para a instalação do colar com GPS. A seguir realizamos todos os testes com o colar, bem aceito pelo animal.

Avisamos o Mario da iminência da reintrodução daquela oncinha-parda que em outubro de 2021 chegou a Caiman pesando bem pouco, com três meses de idade, e desde cedo revelou um caráter agressivo, saudavelmente pouco afeita à presença humana. ‘Fiquem na sua, homens e mulheres.’

Mario Haberfeld é empresário e um dos fundadores do Onçafari. Idealista, como o nosso grupo de profissionais, todos envolvidos até o pescoço no projeto de garantir a sobrevivência e o bem-estar de milhares de espécies animais e do seu habitat.

Oferecer superalimentação

Acho que é legal eu descrever para vocês como fazemos nos dias que antecedem a reintrodução de um animal que já recebeu o carimbo de aprovado para regressar à natureza.

Uma vez definida a data, no caso 23 de junho, como já disse, naquela semana nós disponibilizamos alimentos todos os dias, ele não precisa ficar em jejum como fazíamos propositalmente em algumas ocasiões e ocorre no seu meio ambiente.

O objetivo é criar uma reserva de energia para ir sendo resgatada nos primeiros dias livres, não ter de se preocupar com a função essencial da caça. Para ele tudo é muito diferente do que estava acostumado. Agora o céu é o limite. Os animais reintroduzidos devem interpretar cheiros novos, fugir das onças-pintadas, dar respostas a inúmeras situações inusitadas.

O Mario veio à Caiman acompanhar a soltura do Oliver. Esse é o momento para o qual um grupo grande de profissionais, biólogos, veterinário, guias, ajudantes gerais, trabalhou com afinco por bom tempo, no caso da onça-parda de nossa história, do dia 27 de outubro de 2021 a 23 de junho de 2023. Ah, claro, tudo isso exigiu um investimento nada pequeno.

Hora a hora do grande dia

Já que o dia da soltura é tão especial, você concorda comigo que devo esmiuçá-lo aqui? Vamos lá.

Era 5h30 da manhã, noite ainda no Pantanal dos seus sons inebriantes, quando comecei a caminhada de 25 minutos até o recinto onde estava o Oliver. Levei comigo um frango inteiro, com vísceras, e dois pedaços de carne bovina. Fui sozinha. Quer saber se estava emocionada, apesar de profissional, realizar o meu trabalho e não ser inédito? Sim, muito. Tinha os olhos cheios de água.

Até aquele instante, desde sua chegada, era o Oliver que falava conosco, interessados em descobrir tudo dele. Pois agora era eu que procurava lhe dizer algo, fazê-lo de alguma forma entender o que estava por vir.

Lembra quando eu afirmei, lá no início, de eu ser devota de São Francisco de Assis, o santo protetor dos animais? Enquanto andava, com a imagem de São Francisco na minha correntinha de pescoço, eu rezava, mas sem formalidades. Na realidade, uma conversa com o Chico, sim, São Francisco de Assis.

Tenho certeza, pela grandeza da sua obra, por seu desprendimento máximo, que não se chateia comigo por chamá-lo com tanta intimidade. Falei, em voz pausada, embargada, em meio à cantoria de milhares de aves que, com o nascer do dia, se exprimiam na plenitude, definindo um cenário idílico: “Chico, protege ele.”

Não acredito no acaso. No meu entendimento tudo acontece por uma razão. Creio muito em energia, em um gestor. Peço sempre a esse gestor, chame-o como desejar, proteção quando entro na mata, diante da presença de cobras, vespas.

Com São Francisco ao lado

Desenvolvi uma relação bonita, profunda, com São Francisco, desde pequena. Trabalhei seis anos no zoológico de São Paulo. Uma ocasião passamos uma noite inteira ao lado de um tamanduá-mirim já com idade avançada, sabendo que provavelmente seria a sua última. Não queria que morresse sozinho. Pedi a São Francisco para recebê-lo.

No caso do Oliver, já próxima do seu recinto, antes da soltura, eu dizia: “Chico, vai acontecer um negócio aqui”, como que anunciando a sua mudança brusca de vida.

Voltei para a base e no caminho refletia a respeito de como deveríamos agir para liberar o Oliver. O Mario estaria com a família assistindo. Quem se instala no Caiman Pantanal tem quase a certeza de que fará avistamento de onças, pintadas e pardas, e todos são emocionantes. Elas convivem com os turistas, presentes em carro aberto. As onças aprenderam que não representam perigo.

Já o Oliver estava deixando um recinto que, apesar de grande, era um espaço controlado. Precisávamos ter certeza de que também seguiria seu rumo sem se preocupar com a presença do nosso veículo, ainda que distante.

Vamos lá. O grande dia transcorreu sem intercorrências, para o Oliver e para nós. Quando era 16h52, instalamos camêras Trap em duas portinholas das oito existentes. Levei alimento para as do lado oposto às duas que seriam abertas, a fim de atrair o Oliver para lá.

O mundo é todo seu

Nesse momento, 17h20, orientei a abertura das portinholas. O Oliver já tinha disponível o corredor para o meio ambiente onde nasceu dois anos antes e até os três meses foi criado por sua mãe.

Eu me dirigi ao carro e disse ao Mario que o ideal seria não haver focos de distração para o Oliver. Permanecemos então somente até as 17h28 e regressamos a nossa base. Claro, emocionados.

Deixamos o Oliver no recinto para decidir o que fazer, descobrir a portinhola aberta e tomar seu rumo. As câmeras Trap registram também no infravermelho, portanto à noite.

Exatamente às 18h47, ou seja, cerca de uma hora e meia depois de abrirmos as duas portinholas, já noite, ele saiu tranquilamente do recinto. Cheirou cada centímetro da saída e em segundos foi embora, decidido. Não ficou margeando o recinto, entendeu que havia uma passagem e pronto, seguiu direto, resoluto, como sempre foi com tudo na vida.

Um novo e definitivo capítulo da história dessa onça-parda marcante começou a ser escrito. Por ele e por nós. Seguimos seus passos através do monitoramento permitido pelo GPS no seu colar.

Prometo daqui um tempinho contar a vocês como o Oliver está, se aceitou bem a nova e mais desafiadora condição de vida, o que tem feito, por onde tem andado, enfim, vamos fazer um raio X da sua trajetória na natureza e, com fé em São Francisco, acreditar que a exemplo da Isa, Fera, do Jatobazinho, outra onça-pintada reintroduzida, não só se adapte como presentei a natureza com filhos, netos, bisnetos e tantos “etos” mais possam existir.

Siga nosso trabalho de acompanhar o Oliver na natureza no quarto capítulo de nossa série.

Monitoramento minucioso

Se penso nele? É inevitável. É um subadulto livre na natureza, com todos os riscos inerentes do desafio, um lugar cheio de concorrentes, inimigos, caras corajosos. Mas confiante no seu sucesso. Uma onça-parda, no seu habitat, em condições normais, pode chegar a viver por 20 anos.

O colar nos dá uma série de informações. Identifica, por exemplo, por onde o animal se desloca, se está dormindo ou, longe disso, por favor, morto. Se o colar não registra nenhum movimento do portador por seis horas, um sinal é enviado por e-mail ao Mario e ao Leonardo Sartorello, biólogo coordenador do Rewild, ou reintrodução na natureza.

Como você leu aqui acima, vamos aguardar os novos capítulos dessa bela história capaz de reunir alguns dos valores mais elevados que compõem a trajetória de uma criatura viva.

Chico, lembre-se, por favor, do que te pedi. Obrigado. E minha gratidão também a vocês, amigos, que pacientemente tiveram coragem de me acompanhar na sublime tarefa de liderar um grupo excepcional nesse trabalho de dar ao Oliver uma segunda chance na natureza.

Voltemos a nos falar em breve. Beijuuuu!

 

Fotos de Mario Nelson Cleto: