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Lilian Rampim
Em depoimento ao jornalista Livio Oricchio

 

Texto de apresentação da série

A bióloga-chefe do Onçafari, Lilian Rampim, a Lili, narra nessa série de quatro textos a emocionante e desafiadora trajetória de Oliver, do momento em que foi encontrado sozinho em um aterro sanitário, com apenas três meses de idade, há quase dois anos, à soltura no Pantanal, dia 23 de junho.

Com uma abordagem tocante, Lili descreve, em primeira pessoa, o intenso trabalho dela e da sua equipe na preparação de Oliver para enfrentar os imensos desafios de voltar a viver no seu habitat natural e, se possível, prosperar, gerar descendentes, principal objetivo do Onçafari.

A leitura nos coloca lado a lado da bióloga, levando-nos a sentir de perto as alegrias e apreensões de cada etapa no desenvolvimento do tenaz Oliver.

Nos textos ela é capaz de nos ensinar muito sobre os vários segredos de como preparar um felino selvagem para regressar ao seu meio ambiente, ao mesmo tempo em que, com sua rica descrição, nos transporta para “o esplendor de vida” que é o Pantanal. Vale muito a pena seguir os passos da Lili, experiência marcante, inspiradora.

Hoje disponibilizamos o primeiro capítulo da série. Os outros três serão nos três dias seguintes: dia 31, quinta-feira, segundo capítulo; 01 de setembro, sexta-feira, terceiro; e dia 2, o quarto e último.

 

Capítulo 1: Talvez órfão, Oliver chega a nossa fazenda. Agressivo, como sempre. Felizmente.

Oi pessoal, tudo bem com vocês? Eu sou a Lilian Rampim, bióloga do Onçafari. Sou mais conhecida por Lili. Faço parte de um grupo de profissionais idealistas, apaixonados pelo que fazem, dotados de importante formação acadêmica, experiência e bastante ativo nos nossos objetivos.

Trabalhamos para preservar a fauna e flora dos biomas brasileiros. Como as dimensões do país são continentais, o Onçafari tem base até agora em quatro deles: Pantanal, Cerrado, Amazônia e Mata Atlântica. Quem sabe no futuro chegamos à Caatinga e ao Pampa. Está nos planos. Precisamos de parceiros.

Desenvolvemos vários projetos, mas dois são os principais: os estudos das duas espécies de onças, pintada e parda, e do lobo-guará, no Cerrado. E dentre os grandes desafios de nossas atividades o maior é, sem dúvida, a reintrodução desses animais ao seu habitat natural.

Quer saber por quê? Convido vocês a viajar comigo nessa emocionante história que reúne todos os ingredientes de uma trajetória épica: amor, ciência, descobertas, dedicação, perseverança, apreensão, tristeza, elevados investimentos e, no meu caso, fé.

Confio no nosso trabalho, dado o sucesso em outras experiências semelhantes, e que São Francisco de Assis – você bem sabe é o protetor dos animais – está acompanhando a aventura do Oliver, personagem central de nossa linda história, uma valente onça-parda macho que desde o dia 23 de junho está de volta à natureza, reintroduzida por nosso time.

 

Passo a passo

Vou contar tudo desde o primeiro instante, quem sabe você se emociona como nós, apesar de sermos profissionais e estarmos habituados já a lidar com onças e lobos-guarás, afinal o Onçafari vai completar em breve 12 anos de pródiga existência.

– Hei, venham me ajudar, por favor, acho que vi uma oncinha naquele canto do aterro sanitário.

Foi dessa forma que trabalhadores encontraram o Oliver, em outubro de 2021, no Município de Costa Rica, aqui no Mato Grosso do Sul, quase fronteira com Goiás, vizinho do Parque Nacional das Emas.

Eles recolheram aquele animalzinho frágil, bebê ainda, cheio de pintas e o encaminharam para o Centro de Recuperação de Animais Silvestres (Cras) de Campo Grande. Nós não sabemos se era um órfão ou sua mãe o deixou lá e voltaria mais tarde.

A recomendação para situações semelhantes é, dentro do possível, dar um tempo, para evitar de fazer um resgate prematuro. Se depois de algumas horas a mãe não aparecer, então o melhor mesmo a fazer é o recolhê-lo, dada a proximidade com a cidade.

Como o pessoal do Cras, órgão ligado ao Instituto do Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul (Imasul), conhece a nossa estrutura na Fazenda Caiman Pantanal, 240 quilômetros distante, pois já realizamos bem-sucedidos trabalhos conjuntos, fomos informados da chegada do filhote de onça-parda. Eles têm seus problemas de superlotação.

Dias apenas depois, 27 de outubro, nós já estávamos lá com uma de nossas picapes para buscar a onça e lhe dar uma segunda chance de ter uma vida normal como as demais de sua espécie, no seu habitat natural.

Posso me estender na narrativa? Acho que vale a pena te contar os detalhes, ajudam a compor um quadro mais completo, e comovente, dessa experiência enriquecedora.

 

Seres humanos, fiquem longe, hein?

Nós vimos logo de cara que aquela onça, mesmo com somente algumas semanas de existência, demonstrava ter um caráter forte, traço que seria mantido até quase dois anos mais tarde, quando abrimos as portas do recinto em que vivia aqui na Caiman, no Município de Miranda, base do Onçafari.

O Oliver não queria saber de ser humano por perto. Um sadio selvagem! Agressivo, mostrava os dentes, deixava claro que era para não se aproximar. Mesmo tão pequenino, já procurava nos dizer: ‘Sabe com quem vocês estão mexendo?’

Foi ótimo ver aquilo. Quanto mais exacerbados forem seus instintos, maiores as chances de não apenas sobreviver como prosperar, gerar descendentes, quando os reintroduzirmos na natureza, razão de nosso trabalho.

Os veterinários do Cras realizam vários exames clínicos e laboratoriais nos animais e tudo estando dentro dos padrões de normalidade para a espécie eles os liberam para entidades credenciadas como a nossa. Há uma extensa burocracia documental também a ser seguida. Bem como algumas despesas.

Se permanecesse lá, o provável destino do Oliver seria um zoológico, por exemplo. Não hesito em acreditar que o tratariam bem, mas viveria para sempre em um ambiente distante de onde veio e a evolução o preparou, por milhares de anos, para enfrentar. E, fundamentalmente, ser mais feliz.

 

Melhor sem selfies

Para o projeto de reintrodução de um animal dar certo é importante que ele permaneça o menor tempo possível em locais como o Cras. Isso porque nessas instituições é inevitável o contato frequente com seres humanos, gente de fora mesmo, que se encanta com um animalzinho lindo como o filhote de onça. Quanto menos selfies fizerem com ele melhor é!

A nossa experiência na preparação de onças e lobos-guarás para reintroduzi-los na natureza revela de forma inequívoca a necessidade de eles não associarem o bem-estar ao ser humano, ou ver nossa imagem e saber, por exemplo, que vão receber comida. E, acredite, carinho.

A hora em que regressam ao seu habitat nada disso mais existe. O que acontece é uma competição voraz, constante, pela vida com os demais de sua espécie e mesmo de outras.

Devemos demonstrar amor por eles de forma distinta, internamente, à distância, quase sem que nos vejam. Tenho comigo que chega até eles, também os ajuda e de maneira mais eficiente, sem que façam associações conosco bastante desaconselháveis. Por vezes, fatais.

Depois de quatro horas de estrada chegamos na Caiman com o Oliver em uma gaiola na caçamba na picape. Lá um recinto não muito grande, no primeiro momento, o aguardava.

 

Por que Oliver?

Antes de dar sequência à história de superação do Oliver, o que ficará para o próximo capítulo, devo uma explicação a vocês: de onde vem o nome Oliver.

Há alguns anos um casal de médicos, do Rio de Janeiro, bastante apegado à preservação animal, veio se hospedar nas excelentes instalações da Caiman Pantanal, primeira base de atuação do Onçafari. Venham também nos conhecer. São a Tatiana e o Marcelo.

Eles se apaixonaram pelas onças em preparo para a reintrodução. Adotaram a Fera, uma onça-pintada que junto de sua irmã, a Isa, não só voltaram a viver na natureza, em 2016, como entre filhos e netos já são mais de oito descendentes. Sucesso absoluto!

Para você ter uma ideia da sua paixão, o casal havia adotado, na África, uma fêmea dos ameaçados rinocerontes, de nome Olivia. Ao serem informados de que foi morta por caçadores, ficaram devastados. Foi aí que adotaram o jovem macho de onça-parda que estava conosco e lhe deram, então, o nome de Oliver, em homenagem a Olivia.

Amigos, da próxima vez que nos encontrarmos por aqui retomo a trajetória do Oliver a partir do momento em que foi colocado no seu novo ambiente, aqui na Caiman. Se ele te surpreendeu até agora, como a nós, atente para o que vem a seguir.

Um forte abraço.

 

Fotos por Donal Boyd e Mario Nelson Rodrigues: