Skip to main content
Texto: Edu Fragoso (biólogo e coordenador do Onçafari Science)

Em março de 2021, foi publicado na revista científica Oryx, o artigo intitulado “Is reintroduction a tool for the conservation of the jaguar Panthera onca? A case study in the Brazilian Pantanal” (link de acesso: https://doi.org/10.1017/S0030605320000460), ou “A reintrodução é uma ferramenta para a conservação da onça-pintada Panthera onca? Um estudo de caso no Pantanal brasileiro”, na tradução para o português. Essa publicação apresenta para o mundo os métodos e resultados usados por nossa equipe e colaboradores para reintroduzir as irmãs Isa e Fera de volta à natureza, o que resultou na primeira reintrodução bem-sucedida de onça-pintada no mundo.

 

Início da História da Isa e da Fera

A Isa e a Fera são duas onças que foram resgatadas em Corumbá (MS) em junho de 2014, quando tinham aproximadamente 3 meses de idade. A mãe delas, cruzou o Rio Paraguai com as duas filhotes, na divisa entre o Brasil e a Bolívia, e para descansar da travessia, subiu numa árvore com as suas crias. Mas, como o centro urbano de Corumbá se estende até as margens do rio (Imagem 01), essa árvore se localizava na propriedade de um morador, o qual se assustou ao ver três onças-pintadas no seu quintal. Na tentativa de resgatar essa onça para removê-la de lá, a mãe da Isa e da Fera acidentalmente morreu. As duas filhotes foram então anestesiadas e transferidas para o Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS) de Campo Grande (MS), onde permaneceram sob os devidos cuidados em um pequeno recinto por 9 meses. Após conversas e planejamentos sobre o destino dessas irmãs, elas foram transferidas para o Mantenedor Santa Rosa (Itapira, SP), já com boa infraestrutura e menor contato com seres humanos, já visando a reintrodução das duas irmãs na natureza.

Imagem 01 – Cidade de Corumbá nas margens do Rio Paraguai. Foto: IPHAN/Nabil Bonduki

 

Chegada no Refúgio Ecológico Caiman

Em julho de 2015, a Isa e a Fera finalmente desembarcaram no Refúgio Ecológico Caiman (REC), onde um recinto de 10.000 m2 (equivalente a um campo de futebol) foi planejado e construído no meio do Pantanal Sul especialmente para a reintrodução das duas órfãs (Imagem 02). Lá, graças aos esforços das equipes do Onçafari, Cenap/ICMBio e IMASUL, e com a ajuda de vários colaboradores, elas aprenderam a reconhecer as suas presas naturais (jacarés, queixadas, capivaras, entre outros), a caçar, a vocalizar e a interagir com onças de vida livre (ainda através das telas do recinto). Eram muitas incertezas que permeavam essa tentativa ousada de reintrodução. Segundo Leonardo Sartorello, biólogo, coordenador de reintrodução do Onçafari e um dos autores do artigo, “uma das preocupações era se o processo de treinamento com presas vivas realmente iria funcionar e se, depois da soltura, as duas iriam conseguir caçar em vida livre”.

Imagem 02 – Recinto de reintrodução com 10.000 m2 construído no Refúgio Ecológico Caiman. Foto: Edu Fragoso

Soltura

Em 2016, as duas onças estavam plenamente aptas à soltura, caçando com sucesso todas as principais presas que encontrariam em liberdade e desenvolvendo os comportamentos executados por verdadeiras onças selvagens. Então, em maio de 2016, elas foram anestesiadas para avaliação clínica, colocação de colares de monitoramento GPS e coleta de amostras biológicas. Todos os exames realizados deram negativo para a presença de parasitas e doenças infecciosas, ou seja, ambas estavam saudáveis e prontas para a soltura. Após menos de 11 meses vivendo no recinto do REC, no dia 9 de junho de 2016, agora com pouco mais de 2 anos de idade, os portões do recinto foram abertos e a Isa e a Fera retornaram à liberdade, tendo novamente a planície pantaneira como lar (Vídeo 01 e Vídeo 02).



As portas do recinto permaneceram abertas por 3 meses, para que elas pudessem retornar quando achassem necessário (numa metodologia chamada de soft release, ou “soltura branda”). As duas, após explorarem grandes extensões dentro do REC, estabeleceram suas áreas de vida em regiões relativamente próximas do recinto (Vídeo 03). Segundo Sartorello, “os diferenciais para o sucesso da reintrodução foram manter as duas irmãs isoladas das pessoas, para não serem ‘humanizadas’, o sistema desenvolvido para elas aprenderem a caçar presas nativas da própria região, com níveis diferentes de dificuldade para as onças aprimorarem suas técnicas de abate e um recinto grande construído no próprio local de soltura”.

 

 

Nascimento dos filhotes e a importância da reintrodução

A Isa e a Fera são acompanhadas até os dias de hoje pela nossa equipe do Onçafari. Desde que ganharam a liberdade, elas são vistas por nós e por vários hóspedes que visitam o REC. Hoje elas são verdadeiras onças pantaneiras, caçando suas presas silvestres, defendendo suas áreas de vida, interagindo com as outras onças locais e, inclusive, acasalando com machos da região. Em 2018, a grande notícia: ambas tiveram filhotes em vida livre. A Isa teve a Aurora (Imagem 03), a primeira filhote nascida de uma onça reintroduzida no mundo! Logo depois, a Fera deu à luz ao Céu e à Ferinha (Imagem 04). Os três filhotes cresceram com as suas mães e se tornaram independentes em 2020.

Imagem 03 – Aurora, a primeira filhote nascida de uma onça reintroduzida no mundo. Foto: Mario Nelson Cleto
Imagem 04 – Ferinha (na frente) e Céu (no fundo), os primeiros filhotes da Fera na natureza. Foto: Edu Fragoso

 

A Isa teve uma segunda filhote em 2020, chamada de Aracy (Imagem 05). Meses depois, a Fera também apareceu com a sua segunda ninhada, uma filhote nomeada de Turi (Imagem 06). Assim, o projeto com a Isa e com a Fera foi um sucesso, não apenas em nível individual, mas também populacional, pois ambas foram bem-sucedidas na reprodução e na criação de seus filhotes na natureza. “A maior conquista desse projeto pioneiro foi devolver à vida livre dois animais que seriam condenados a passar o resto da vida no cativeiro e, hoje, observarmos que as duas já geraram descendentes, ajudando a melhorar a população da região”, diz Leonardo. O coordenador do Onçafari Rewild acrescenta que “a reintrodução é um método viável e replicável. Ela pode ajudar animais que vivem em cativeiro a ter uma segunda chance em vida livre, os quais geralmente ficam ‘estocados’ em Centros de Triagem e de Reabilitação por todo o país”.

Imagem 05 – Isa (à esquerda) deitada com a sua segunda filhote, a Aracy (à direita). Foto: Edu Fragoso
Imagem 06 – Fera lambendo a sua nova filhote, a Turi. Foto: Edu Fragoso

Novidades

E as boas novas não param por aí. A equipe do Onçafari descobriu que as irmãs Isa e Fera já são avós. A Aurora (filhote da Isa) teve um filhote chamado Baadaye (Vídeo 04), e a Ferinha (filhote da Fera) foi recentemente avistada com um filhote de aproximadamente 3 meses (Imagem 07), que ainda não foi nomeado. A partir da soltura das duas irmãs, atualmente já são mais 9 novas onças-pintadas na população. Tecnicamente falando e de acordo com as diretrizes internacionais para a reintrodução de espécies, o projeto com a Isa e com a Fera atingiu o grau máximo de sucesso, com a segunda geração de descendentes das duas irmãs vivendo livremente na planície pantaneira.

Imagem 07 – Ferinha e seu filhote recém-descoberto pela equipe do Onçafari. Foto: Mario Haberfeld

 

De acordo com os autores do artigo, “este projeto de reintrodução foi extremamente importante para desenvolvermos e testarmos uma metodologia de recolocação de onças-pintadas na natureza, visando sua aplicação em biomas mais criticamente ameaçados. Foi muito importante testar no Pantanal, onde a situação da população de onças está um pouco mais confortável, ao invés de tentar logo de início na Mata Atlântica, por exemplo, onde qualquer indivíduo é extremamente raro. Além disso, essa metodologia também é importante para o manejo genético de subpopulações extremamente ameaçadas e isoladas, tais como as da Caatinga, Chaco Argentino, Mata Atlântica, e as do Arizona (EUA)”.

“Mesmo considerando os custos elevados do processo até culminar na soltura, a reintrodução é uma importante ferramenta que se soma a outras estratégias de conservação da espécie em longo prazo. Além disso, a metodologia usada com a Isa e com a Fera pode ser adaptada e repetida com outras espécies de grandes carnívoros com comportamentos sociais semelhantes”, complementam os autores do artigo da Oryx.

 

Esforços Coletivos e Integrados

Parte do êxito da soltura da Isa e da Fera deve-se à colaboração de várias pessoas e instituições em prol de um objetivo comum: a conservação da onça-pintada. Somado a isso, a escolha do Refúgio Ecológico Caiman (REC) como lugar de soltura, teve grande importância. O REC tem uma área de aproximadamente 53,000 hectares (530 km2), localizada entre Miranda e Aquidauana (MS), sendo o lugar onde o Onçafari foi criado em 2011. A Caiman também é referência em ecoturismo no Pantanal, recebendo hóspedes do mundo todo que podem observar onças-pintadas e toda a fauna pantaneira na natureza. A vasta extensão protegida do REC e toda a sua gestão voltada à conservação, junto com o conhecimento sobre onças-pintadas da equipe do Onçafari e do Cenap/ICMBio, sem dúvida foram determinantes para a realização e sucesso desse projeto.

 

Reintroduções ao redor do mundo

O sucesso da Isa e da Fera se soma a outros casos de reintrodução no mundo. Um dos mais conhecidos é o dos lobos (Canis lupus) no Parque Nacional de Yellowstone (PNY). Essa espécie foi exterminada do PNY em 1926. Apenas em 1995 e 1996, os primeiros lobos vindos do Canadá, foram reintroduzidos no Parque e, atualmente, já existe uma população estável, retomando o equilíbrio ecológico da área. Outro caso bem-sucedido é o do lince-ibérico (Lynx lynx), que em meados do século 20 estava completamente extinto em toda a parte continental da Europa Ocidental. Graças a uma soma de estratégias de conservação, que incluem em grande parte a reintrodução, e esforços coletivos de vários países, a distribuição e o tamanho populacional atual da espécie são muito maiores do que nos últimos séculos. No Brasil, um exemplo de sucesso é o do mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia), que beirou a extinção, mas devido à reprodução em cativeiro e reintrodução iniciada na década de 1980, as populações selvagens já chegam a cerca de 1.000 animais nos dias de hoje.