*Por Fábio Paschoal
A onça-pintada era encontrada dos Estados Unidos até a Argentina, mas perdeu mais de 50% de seu território original. Apesar disso, a espécie ainda possui considerável distribuição geográfica e se sente em casa em ambientes quase opostos, do semiárido da Caatinga às florestas alagáveis da Amazônia.
Para entender melhor como é a relação do felino com os recursos disponíveis para a sua sobrevivência em lugares tão diferentes, pesquisadores utilizaram dados de telemetria (técnica que determina o posicionamento dos animais ao longo do tempo a partir de rastreadores via GPS) de 20 machos e 20 fêmeas para traçar o perfil da onça-pintada na América do Sul. De 1998 a 2015, foram registrados 87.376 posicionamentos individuais, através dos rastreadores, entre as 40 onças.
“Este estudo demonstra a importância dos dados obtidos através dos colares com GPS, que permitem uma ampla variedade de análises que são fundamentais no desenvolvimento de planos de ações para a conservação das espécies monitoradas por essa tecnologia”, diz Carlos Eduardo Fragoso, biólogo do Onçafari.
Os resultados podem ser encontrados no artigo Resource selection in an apex predator and variation in response to local landscape characteristics (Seleção de recursos em um predador de topo de cadeia e variação em resposta a características da paisagem local), que reuniu 29 pesquisadores de 18 diferentes centros de ciência – entre eles o Instituto Mamirauá e uma unidade de pesquisa do Ministério da Ciência Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) – e foi publicado no periódico El Sevier – Biological Conservation 228 (2018).
“Conseguimos, pela primeira vez, juntar dados e fazer uma análise de uso de espaço e dos recursos naturais por essa espécie [onça-pintada], que ainda é muito pouco conhecida, não só em sua ‘área de vida’, mas também em uma área menor, em relação às escolhas que ela faz em uma escala reduzida. Conseguimos ter uma ideia mais refinada de como ela consegue os recursos”, explica Emiliano Esterci Ramalho, diretor Técnico-Científico do Instituto Mamirauá e um dos autores do estudo.
A pesquisa acompanhou indivíduos em cinco biomas sul-americanos e oito lugares diferentes:
- Pantanal: Refúgio Ecológico Caiman (local onde está a base do Onçafari) e Estação Ecológica Taiamã
- Amazônia: Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá;
- Caatinga: Parque Nacional da Serra da Capivara;
- Cerrado: áreas privadas;
- Mata Atlântica: Parque nacionais do Iguaçu (Brasil) e Iguazú (Argentina), Parque Estadual de Ivinhema e Parque Nacional do Morro do Diabo;
O perfil da onça-pintada na América do Sul
De uma forma geral, as onças analisadas mostraram-se interessadas por regiões próximas a cursos de água (como rios, lagos e igarapés), tanto do ponto de vista da extensão total de seu habitat, quanto nos momentos em que estavam à procura de alimento – ainda que a distribuição de onças inclua também lugares extremamente áridos, onde a água é escassa.
Isso sugere que esses felinos mudam seu comportamento de acordo com o tipo de ambiente no qual estão inseridos. Eles podem aumentar a extensão de sua movimentação, a área de seu local de repouso, sua atividade noturna e o uso de vales e cavernas para amenizar a temperatura e evitar a perda de água.
Descobriu-se que as onças tendem a evitar áreas abertas em regiões onde florestas cobrem mais de 58,4% da área. Entretanto, essa tendência pode variar significativamente em áreas diferentes, o que sugere que os indivíduos da espécie podem alterar sua preferência em função da disposição de florestas em seu habitat. Elas também mostram predileção por locais de menor densidade humana, evitando regiões com grandes concentrações populacionais.
“A preferência da espécie por áreas florestadas e próximas da água mostra a importância das matas ciliares no planejamento de corredores que permitam o deslocamento dos animais para conectar as populações, garantindo um maior fluxo genético que pode assegurar a sobrevivência da espécie em longo prazo”, comenta Fragoso.
Por outro lado, a presença de gado parece atrair indivíduos machos nos momentos em que estão à procura de presas, enquanto o mesmo não acontece com as fêmeas. É possível que essa diferença entre os gêneros aconteça por conta da extensão maior percorrida pelos machos diariamente, o que pode aumentar a probabilidade de encontros com o gado (o interesse dos indivíduos pelo gado pode ser um reflexo da disponibilidade de presas nas regiões examinadas).
O estudo também observou o deslocamento das onças-pintadas. De acordo com os dados coletados, não foram identificadas grandes alterações nas áreas percorridas pelos indivíduos da espécie quando próximos a estradas, o que representa um risco à conservação dos felinos, tendo em vista a possibilidade de colisões com veículos.
Segundo Fragoso, estima-se que as onças-pintadas como as conhecemos existam há cerca de 850.000 anos e elas são encontradas em uma grande diversidade de habitats. “Isso se refletiu numa flexibilidade muito grande na adaptação a diferentes condições ambientais, as quais sofreram alterações ao longo da história evolutiva da espécie. Mas nenhuma dessas mudanças se compara em rapidez àquelas causadas pelos seres humanos que, num curto período de tempo, aceleraram muito a perda de habitat e a redução populacional das onças-pintadas. O estudo mostra que isso tem forçado as onças a desenvolverem mecanismos para persistirem nessas paisagens antropizadas, como percorrer maiores distâncias até encontrarem áreas mais favoráveis. Isso acaba expondo os felinos a atropelamentos ou conflitos com os seres humanos”, comenta o biólogo.
A onça-pintada é considerada uma espécie que está no topo da cadeia alimentar e, por isso, é indicadora da saúde da biodiversidade de uma região. Se as onças estão bem, é provável que o ecossistema onde elas vivem esteja em equilíbrio. “A onça é uma espécie ‘guarda-chuva’. Por precisar de áreas amplas e ser carismática, a conservação dela permite a conservação de outras espécies também”, afirma Emiliano. “A gente precisa ter investimento continuado em ciência, conservação, divulgação da ciência, para preservarmos esses animais. A onça-pintada é símbolo da biodiversidade brasileira, então precisamos conservar essa espécie. Temos que investir em ciência, porque ciência é a base fundamental para conservarmos a biodiversidade.”
A partir dos resultados observados pelo estudo é possível estabelecer prioridades para a conservação da onça-pintada.
*Fabio Paschoal é biólogo, jornalista e guia de ecoturismo. Foi editor e repórter de National Geographic Brasil por 5 anos e hoje é produtor de conteúdo do Onçafari e da GreenBond