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É impossível descrever o sentimento de olhar nos olhos de uma onça-pintada selvagem – Foto: Gustavo Figueiroa

*Por Fábio Paschoal

A onça-pintada é o maior e mais poderoso felino das Américas, sua pelagem amarela com rosetas pretas é a perfeita camuflagem para andar na floresta, onde os fachos de luz em meio à sombra das árvores tornam o felino praticamente invisível. Almofadas na sola das patas ajudam a abafar o som e permitem que o predador ande pela mata silenciosamente, como se fosse um fantasma. No entanto, o crescimento urbano faz com que a onça-pintada seja forçada a revelar sua presença ao procurar abrigo em cidades, o que gera conflito com pessoas.

A Panthera onca já perdeu 50% de seu território original. Segundo a Avaliação do risco de extinção da Onça-pintada Panthera onca (Linnaeus, 1758) no Brasil, ela ocorria em todos os biomas brasileiros, mas hoje está extinta nos Pampas e é classificada como criticamente em perigo na Caatinga e na Mata Atlântica, em perigo no Cerrado e vulnerável no Pantanal e na Amazônia. Por isso, cada onça-pintada selvagem é vital para a conservação da espécie.

A Isa é a irmã maior da Fera – Foto: Edu Fragoso

A história de Isa e Fera (as onças-pintadas que perderam a mãe em um trágico acidente)

Corumbá, junho de 2014. Durante o período de cheia no Pantanal, as chuvas elevaram o nível do rio Paraguai forçando uma onça-pintada a mudar suas duas filhas de lugar. A procura de um local mais elevado a mãe se abrigou em uma árvore junto com as pequenas. O problema é que essa árvore ficava na propriedade de um morador da região.

Os bombeiros, a polícia ambiental e uma veterinária foram chamados para fazer o resgate. Eles usaram dardos com tranquilizantes e uma rede foi preparada para amortecer a queda do animal. Mas a rede não aguentou o peso, e a onça caiu na água. Ela foi retirada, mas infelizmente não resistiu. As órfãs foram resgatadas, transferidas para o Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS) de Campo Grande e estavam destinadas a passar o resto da vida em cativeiro.

A Fera é irmã menor da Isa – Foto: Edu Fragoso

Onçafari Rewild

Para tentar mudar essa história surgiu o Onçafari Rewild, um projeto, feito em parceria com Cenap (Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros) e ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), com o objetivo de ser o primeiro no mundo a reintroduzir onças-pintadas na natureza com sucesso.

Um recinto a céu aberto, de 1 hectare – com açude, árvores e lugares para os animais ficarem escondidos – foi construído no Refúgio Ecológico Caiman (REC), a fazenda e hotel de ecoturismo onde fica a base do Onçafari. “Levamos em conta dois aspectos para a construção do recinto: uma localização central para aumentar as chances das onças estabelecerem território dentro da fazenda e um lugar relativamente alto que não inundasse durante a cheia,” comenta Lilian Rampim, bióloga e coordenadora do Onçafari.

Recinto construído no Refúgio Ecológico Caiman para abrigar Isa e Fera – Foto: Mario Haberfeld

A irmã maior foi batizada de Isa e a menor de Fera (os nomes foram escolhidos por apoiadores do Onçafari). Elas chegaram no recinto do REC em julho de 2015. (para apoiar o Onçafari participe da nossa campanha de crowdfunding ou acesse https://oncafari.org/ajude.html). Como estavam acima do peso, entraram numa dieta. Inicialmente recebiam pedaços de carne ou frango a cada três ou quatro dias.

No entanto, para a reintrodução ter êxito, as irmãs precisavam aprender a caçar. E isso só aconteceria se presas selvagens fossem introduzidas. Em outubro de 2015, quando saiu a Autorização para Atividades Científicas para Captura de Animais Silvestres In Situ, Isa e Fera começaram a receber animais vivos. “A gente ofertou as presas que o governo permitiu que a gente ofertasse: porco doméstico, jacaré, capivara e queixada. O processo foi baseado em videogame mesmo. Começando com presas mais fáceis que não ofereciam risco a elas e depois presas com grau de dificuldade maior,” explica Lilian.

Lilian Rampim, bióloga e coordenadora do Onçafari – Foto: Onçafari

Sete portões foram construídos para a introdução das presas para que as onças não soubessem onde os animais iriam entrar. Placas impediam que os felinos observassem os guias e pesquisadores do Onçafari introduzindo bichos dentro do recinto para que as irmãs deixassem de associar humanos com comida. A cada sete dias uma nova presa era introduzida por um portão diferente.

Quando não estavam caçando as irmãs interagiam entre si. “O fato de serem duas onças-pintadas foi crucial para o sucesso do projeto porque a cada momento que elas não tinham presa no recinto, elas tinham um comportamento lúdico. Que na verdade não era brincadeira, mas servia como teste de habilidade para a vida na natureza,” comenta a bióloga.

Retorno ao Pantanal

Em junho de 2016, quando as órfãs atingiram a maturidade sexual, desenvolveram a capacidade de vocalizar, passaram por todas as etapas de caça com sucesso e aprenderem a matar todas as presas utilizando a mesma técnica que onças-pintadas selvagens utilizam para abater suas presas (mordida na cervical para quebrar o pescoço), elas estavam prontas para voltar à natureza.

Segundo Lilian, um mês antes da abertura do recinto, as irmãs foram capturadas para um checkup.  Os pesquisadores verificaram que elas estavam saudáveis e com a musculatura desenvolvida. Colares com GPS foram colocados para o monitoramento dos animais após a liberação. “Elas passaram por todos os estágios de dificuldade e passaram com louvor. Era hora de soltar.”

Fera saiu primeiro. Isa seguiu um pouco depois. Após quatro dias a irmã menor pegou sua primeira presa selvagem em ambiente natural, um queixada adulto. A irmã maior iniciou com aves, mas logo começou a caçar animais de grande porte. Para Lilian essa foi a confirmação de que elas estavam prontas para viver como onças-pintadas selvagens.

Fera se tornou uma excelente caçadora após sair do recinto – Foto: Adriano Gambarini

Fera sendo observada por turistas do Refúgio Ecológico Caiman – Foto: Edu Fragoso

As onças residentes do REC tiveram um ano para se relacionar com as irmãs. Assim, quando elas saíram, não sofreram represálias. Em pouco tempo já estavam copulando com os machos da região, passaram a ser observadas pela equipe do Onçafari e por turistas que visitam o REC, foram tema de documentário da BBC (Jaguars: Brazil’s Super Cats) e até viraram estrelas de uma coleção de joias.

Porém, foi em julho desse ano que uma das câmeras traps registrou a cena que mais encheu a equipe de orgulho: Isa foi flagrada ao lado de uma pequena oncinha: sua primeira filha, Aurora. No mês seguinte, Fera foi registrada ao lado de seus dois primeiros filhotes. De acordo com o protocolo de reintrodução da IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza, na sigla em inglês) ainda é necessário esperar que as irmãs se tornem avós para considerar o Onçafari Rewild bem sucedido, mas não há como negar que todo o processo de reintrodução foi um feito extraordinário.

Graças a esses resultados, o Onçafari já construiu um recinto na Amazônia e começou o processo de reintrodução de outras duas onças-pintadas na maior floresta tropical do mundo. Segundo Lilian, o próximo passo é seguir para lugares onde o felino enfrenta mais problemas. “A gente buscou condições ideais para descobrir a receita do bolo para começarmos a aplicar em biomas onde a onça-pintada se encontra criticamente ameaçada.”

Ainda há muito trabalho pela frente, mas o futuro do Onçafari Rewild é promissor.

*Fabio Paschoal é biólogo, jornalista e guia de ecoturismo. Foi editor e repórter de National Geographic Brasil por 5 anos e hoje é produtor de conteúdo do Onçafari e da GreenBond

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